Por Mariana Monferdini*
Metade da população brasileira – ou mais de 116 milhões de pessoas – sofrem hoje com a insegurança alimentar, ou seja, não usufruem de acesso pleno e permanente aos alimentos e 19 milhões passam fome. Os dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil compõem um cenário mundial nada animador. A previsão é de que, em 2030, cerca de 660 milhões de pessoas em todo o planeta ainda enfrentem a fome. Em um contexto atual complexo, com problemas socioeconômicos e ambientais que envolvem ainda eficiência energética, manutenção e preservação dos recursos naturais, é urgente debater e buscar novos caminhos para acabar com essas disparidades. A solução sem dúvida passa por articular o desenvolvimento rural e urbano.
Muitas agendas científicas e movimentos sociais têm apontado a segurança alimentar nas áreas metropolitanas como questão estratégica, principalmente como forma de repensar e redefinir as dinâmicas de produção e consumo. O objetivo é construir sistemas curtos e biodiversos, que contribuam para a resiliência dos sistemas agroalimentares, trazendo mais segurança e soberania alimentar para a população em geral. Em momentos de emergência social, ambiental e climática, ao qual se somaram atualmente a crise sanitária e econômica provocada pela pandemia da Covid-19, amplia-se a percepção da relevância de garantia das condições de “subsistência” e “autonomia” na provisão suficiente dos alimentos para as cidades.
É evidente que há desafios gigantescos nesse caminho, os interesses são muitos e diversos. Mas o foco, quando se pensa em comida de verdade, é voltar o olhar aos agricultores e agricultoras familiares, responsáveis por 70% dos alimentos básicos e saudáveis que chegam à nossa mesa todos os dias. É essencial implementar ações duradouras e sustentáveis que fortaleçam esses fornecedores.
Em muitas regiões brasileiras, há uma linha tênue sobre campo e cidade, urbano, periurbano e rural. Muitas vezes esta agricultura acontece em todas estas “bordas” da cidade e também dentro delas, é o que podemos chamar de Agricultura Urbana e Periurbana (AUP). É uma prática que vem sendo apontada como uma via possível tanto para evitar eventuais momentos de desabastecimento das cidades causados por alterações emergenciais – como conflitos ou epidemias – como também para ampliar os espaços verdes, ambientes e relações saudáveis, além da conexão rápida e barata a alimentos de qualidade.
A AUP tem a grande vantagem de interagir com diversas temáticas e políticas públicas. Possibilita o acesso a alimentos saudáveis e a baixo custo, o que hoje é algo difícil para a população de baixa renda, seja por limitações financeiras ou mesmo pela falta de disponibilidade de oferta de alimentos frescos em muitas áreas periféricas das cidades. Promove a saúde ambiental, à medida em que incentiva a ocupação dos espaços urbanos com a produção de alimentos de maneira sustentável, criando espaços de sociabilidade e pertencimento à comunidade local. Fomenta o respeito aos saberes e conhecimentos locais, por meio da promoção da equidade de gênero, participação ativa das mulheres, uso de tecnologias apropriadas e processos participativos, promovendo uma gestão urbana social e ambiental das cidades.
Uma das iniciativas baseadas na AUP que já está em fase de implementação em diversas cidades do Brasil é o projeto Territórios da Agricultura. Reunindo especialistas em programas de caráter socioeducativo, entes públicos e privados, ONGs, movimentos e entidades acadêmicas, é uma ação que convoca os participantes a serem protagonistas no desenho de soluções para sua comunidade, com foco na mobilização coletiva e na geração sustentável de renda.
Alinhado a nada menos que oito dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) na Agenda 2030 da ONU, seu grande propósito é mobilizar e reunir diversos atores da comunidade local, promovendo diálogo com temáticas transversais à agricultura e contribuindo para o desenvolvimento sistêmico do território. A meta é a implementação coletiva de um plano de desenvolvimento do ecossistema de produção de alimentos naquela localidade e, em larga escala, garantir a presença de alimentos saudáveis e acessíveis na mesa de todos os brasileiros. Previsto para ser escalável e replicável, se encerra sempre com uma exposição audiovisual aberta ao público, disseminando resultados e aprendizados.
Com uma perspectiva integral que busca o desenvolvimento pessoal, social e sistêmico dos membros da comunidade e dos territórios locais em que se propõe a atuar, é uma ação que combina conceitos, metodologia e linguagens nas esferas da inovação social, da educação e da cultura – um tripé extremamente potente para promover mudança social, preservação ambiental e segurança alimentar sustentável.
* Mariana Monferdini é coordenadora do projeto Territórios da Agricultura na Evoluir, empresa que gera valor e impacto social por meio de iniciativas educacionais, culturais e socioambientais na perspectiva da Educação Integral.